AMOR FATI, ETERNO RETORNO E UMBANDA

              Ao estudar filosofia, o que me é constante e rotineiro paralelamente aos estudos teológicos umbandistas, tenho me deparado com certos conceitos [ou até mesmo com a negação de conceitos] que partem de alguns filósofos e que podem ser pensados e analisados por intermédio da ótica filosófica umbandista. Sim, ela é peculiar, mas, nem por isso, deixa de ser filosófica, afinal (insistiremos nisso até o fim dos nossos dias), a Umbanda é filosófica, é uma filosofia de vida e, muito além disso, é uma religião que traz em si uma filosofia sólida, concreta, palpável, coerente e que em nada deixa a desejar a qualquer outro arcabouço filosófico já apresentado a nós ao longo da história.

              Ainda que alguns colegas da filosofia torçam o nariz para os nossos conceitos e afirmações, continuaremos por aqui, na Ordem Mágica Caminhos da Evolução, apresentando imbricações e relações entre o nosso saber teológico (e filosófico) e muitos aspectos dos pensamentos de alguns filósofos, ainda que, muitos deles tenham militado bem distante de toda e qualquer possibilidade teológica. Por que, em verdade, se analisarmos alguns conceitos filosóficos, colocando-os em comparação com  outros similares religiosos, veremos as mesmas coisas sendo pensadas, analisadas e ditas, porém, com roupagens diferentes.

               Na Umbanda, filosofia e teologia se imbricam, se entrelaçam e amalgamam-se. Isso é fato!

               Pensemos: se eu analisar fenômenos naturais a partir de conceitos religiosos ou filosóficos, chegarei, invariavelmente, ao mesmo lugar, não é mesmo? Vejamos: uma análise filosófica de um fenômeno natural atribuirá o mesmo à Natureza, enquanto uma análise religiosa do mesmo fenômeno o atribuirá a Deus. O que coincide em ambos, é que atribuem a explicação última [ou primeira] de tal fenômeno a algo [ou alguém???] superior, muito maior mesmo! É o que nos faz concluir que ambos os caminhos levam, em última instância [ou em primeira…], ao inexplicável.

               Então, não chegam ao mesmo lugar com roupagens ou por caminhos diferentes? Você discorda? Caso discorde, por favor, conteste esse nosso raciocínio.

               Esta introdução quer nos levar a uma análise de alguns conceitos firmes no pensamento de Friedrich Nietzsche [ainda que ele tenha sido avesso aos conceitos] à luz da visão filosófica umbandista. Entendemos que, até mesmo a negação do conceito é, em si, uma conceituação. E este nosso entendimento pode “puxar a linha” para outra discussão, em um texto futuro.

               Vamos analisar os conceitos de Amor Fati e Eterno Retorno.

               Na obra “A Gaia Ciência” (2019), em seu Livro IV, o autor expõe os conceitos aqui citados, respectivamente, no segundo e no penúltimo aforismo. Busquemos entender cada um deles:

276. Para o Ano-Novo – Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho de viver, pois ainda tenho de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum [Eu sou, portanto penso: eu penso, portanto sou]. Hoje, cada um se permite expressar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração – que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2019, p. 166).

 

O aforismo nos traz a definição de amor fati, que é, em síntese, amor ao destino. Vemos o filósofo alemão expressar o seu desejo para um novo ano, de uma bela vida [considerando-se que, sempre pensamos, à época dos réveillons, em uma vida melhor para o ano seguinte]. Mas uma vida bela, no anseio nietzscheano manifestado, é uma vida plena de beleza [aqui, a redundância é proposital e quer provocar reflexão]. Não pensemos que o filósofo desejava uma vida em grandes palacetes, com uma pseudofelicidade, com grandes conquistas financeiras. Nietzsche foi [ainda que alguns possam contestar], um filósofo da alma humana. E nesse aforismo busca a realização e a plenitude nas belezas mais essenciais e sutis da vida.

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas – assim me tornarei um daqueles que fazem belas coisas. Amor fati [amor ao destino].

Nós, umbandistas, temos almejado, nesta nossa caminhada evolutiva, as verdadeiras belezas da vida? Temos observado a beleza da vida, em nosso dia a dia, ao nosso redor, na natureza que nos cerca?

Amor fati é amor ao destino. Como amaremos o destino se sempre o condicionamos, exigindo que ele nos traga aquilo que queremos? Isso é um contrassenso, se considerarmos que não temos controle sobre ele, não é mesmo? Então, entregues à Providência Maior, de Deus, amaremos aquilo que nos é reservado, pois, sabemos, o que virá será o melhor para nós naquele momento e naquela situação.

Obviamente, isso não é tão fácil de ser aceito por nós, ainda que sejamos umbandistas e tenhamos a nossa fé incondicional em Deus, nos Orixás Sagrados e nos nossos guias espirituais. Ainda insistimos [ilusoriamente, é claro] em atuarmos como artífices da nossa própria história. Podemos até atuar, como atores que interpretam um papel da melhor forma possível, mas, precisamos ter a consciência de que não somos os roteiristas dessa mesma história. Ou somos? Cabe lembrar que um roteirista tem sempre o controle total sobre o seu roteiro.

O amor ao destino, incondicional, virá quando olharmos para o Sol, para a Lua, sentirmos o ar que nos banha o tempo todo como bênçãos. E que agradeçamos a Deus pela vida!

E quando olharmos, com amor, aquilo que é realmente necessário [e fundamental], nos tornaremos aqueles que [parafraseando o filósofo] dizem Sim!; isso não significa dizer que seremos pessoas condescendentes com tudo o que se apresentar e abaixaremos a cabeça para situações ou seres que busquem aproveitar-se de nós ou, até mesmo, explorar-nos, mas, tão somente que, quando acessarmos tal vibração plenamente, já não se apresentarão mais ao nosso espírito estas situações negativas. Estaremos vivendo, de fato, num paraíso consciencial. Ainda como seres humanos imperfeitos em evolução, mas numa franca e equilibrada busca pelo aperfeiçoamento.

[…] Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! […] E, que tal refletirmos acerca deste excerto? Temos guerreado por pouco … ou por quase nada? Temos acusado e apontado o dedo constantemente ou invariavelmente, para quem quer que seja? Vamos desviar o olhar? Talvez você me responda que desviar o olhar é, em determinadas situações, alienar-se do problema. Mas, não tem sido, em muitas situações, justamente o não desvio do olhar e o dedo apontado para a outra pessoa [antes mesmo de entendermos seus limites e suas motivações] que têm provocado guerras desnecessárias? Reflitamos…!

Vamos ler e reler este excerto, de coração aberto. Não condenemos o amor fati ao calabouço da história [ou da vida]. Busquemos compreendê-lo.

Sobre o eterno retorno:

 

341. O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pensaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2019, p. 205).

 

O eterno retorno nietzscheano pode parecer catastrófico para algumas pessoas. Será mesmo? Vamos analisá-lo.

Primeiramente, vamos entender o termo demônio por intermédio de um conceito diferente daquele que nos foi apresentado pela cultura judaico-cristã.  Na mitologia grega, o daimon (demônio) era um ser que se apresentava numa natureza intermediária entre a mortal e a divina, inspirando e aconselhando, até mesmo, os humanos encarnados. Na Ética [de Aristóteles] simbolizava virtude, sabedoria e a essência mais iluminada do ser humano, uma entidade oculta que pode ser comparada, na Umbanda, aos nossos mentores e guias espirituais.

Será a partir deste entendimento do termo que analisaremos este pensamento do filósofo alemão, sob a nossa ótica umbandista.

Poderíamos, de forma simples [ou simplista] associar o eterno retorno, definido por este filósofo, ao fenômeno da reencarnação. Sim, sempre podemos buscar as explicações trilhando diversas searas, mas, se assim fizéssemos, estaríamos nos distanciando daquilo que ele quis no entregar com seu pensamento e desvirtuando por demais tal ideia.

Por isso, faz-se necessário entendermos que, neste excerto, o autor se refere ao retorno como as repetições da vida cotidiana, com um ar fatídico para uma repetição plena desta vida. Em verdade, ele está nos perguntando algo mais ou menos assim: “Você quer viver tudo isso que já viveu, está vivendo e ainda viverá, novamente?”. Pois, agora eu pergunto: “O que você responderia para Nietzsche?”.

Você reviveria com satisfação os acertos, os erros, as mágoas, as frustrações, os prazeres, os desprazeres e tudo aquilo de bom e ruim pelo qual passou [e ainda passará] nessa vida? Cabe ressaltar que não há a opção de retornar revivendo só aquilo que nos satisfaz; o  eterno retorno é um combo completo e inegociável, que não aceita termos médios ou meios termos. Retornar e reviver significa passar por tudo novamente. O que você pensa acerca disso?

Agora podemos, finalmente, levar o trem nietzscheano para um caminho que nos é familiar. Não seria a experiência reencarnatória, que traz ao espírito humano a possibilidade de aperfeiçoamento, um eterno retorno, afinal, sabemos, é justamente a repetição das experiências que nos fortalece e nos traz crescimento, não é mesmo?

Ainda que estejamos analisando tal conceito a partir do pensamento de um filósofo declaradamente ateu, podemos compreendê-lo bem, por meio do pensamento umbandista. Ou tudo o que lemos aqui não tem relação alguma com o que vêm nos trazendo os guias espirituais, com seus ensinamentos, há pouco mais de um século?

Aliás, no que se refere ao ateísmo de Nietzsche, sabemos que, em dado momento, ele se referiu a religiões afirmativas de um modo bem positivo. E assim definiu, referindo-se a algumas religiões naturais. Tivesse conhecido a Umbanda (que lhe é historicamente posterior), talvez tivesse se encantado por sua beleza e fundamentos.

Mas, para que possamos concluir esse texto, provocamos com alguns questionamentos, a sua reflexão. Digamos que, em hipótese alguma, você aceitasse [se lhe fosse possível escolher] o eterno retorno; assim sendo, você também não carregaria em seu coração o amor fati, não é mesmo? Afinal, como amar o destino colocando condições para amá-lo?

Talvez você esteja, agora, um pouco decepcionado(a) pela carga considerável de questionamentos aqui colocados. E pode estar se perguntando: onde encontrarei as respostas? Deixarei aqui uma última contribuição: que tal, em você mesmo(a)?

Um saravá fraterno!

 

                         André Cozta

 

 

REFERÊNCIA:

A GAIA CIÊNCIA / Friedrich Nietzsche – Tradução: Paulo César de Souza / 2019 / Companhia das Letras / São Paulo – SP

2 comentários em “AMOR FATI, ETERNO RETORNO E UMBANDA”

  1. Taí uma nova visão que com certeza vou pensar a respeito. No entanto, gostei mundo do artigo. Sou sacerdotisa de Umbanda há 44 anos e continuo buscando aprender. Muita Luz e Paz ptofunda.

    1. Muito obrigado, irmã!
      Aqui mesmo, neste site, encontra outros textos nossos.
      Alguns deles, inclusives, estão no nosso podcast “Caminhos da Evolução: Umbanda e Filosofia”.

      Um abraço fraterno!

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