QUANDO O FANATISMO SE SOBREPÕE À FÉ

 

 O fanatismo caracteriza-se pelo fervor excessivo de uma pessoa em algo que ela crê irracionalmente. Pode-se encontrar tal manifestação na política, nos esportes, na vida profissional, até mesmo na filosofia. Porém, o que mais observamos [e, talvez seja uma falha nossa não olharmos para os outros setores da sociedade anteriormente citados] é o fanatismo religioso.

É um estado psicológico, além de irracional, excessivo, persistente, contínuo e, muitas vezes, escalonadamente crescente, infelizmente!

Neste texto, estou me detendo a analisar o fanatismo no campo religioso; para ser mais específico, na única religião que estudo, analiso, observo e pratico durante toda a minha vida, que é a Umbanda.

Por que nós, umbandistas, costumamos criticar, julgar apontando o dedo para adeptos de outras religiões, especialmente as cristãs (tanto de igrejas pentecostais quanto da católica), acusando-os de fanatismo, de intolerância etc. etc. etc. Sim, basta observarmos, e veremos que a dita intolerância religiosa [que advém da intolerância humana], pulula naturalmente – senão em cem por cento dos casos, mas em grande parte deles – de posicionamentos e convicções fanáticas.

Então, rapidamente identificamos e criticamos as formas de manifestação em seus ritos, na forma como se manifestam na defesa de suas crenças, entre outros aspectos que aqui não citarei, pois, é meu objetivo analisá-lo dentro da nossa religião. Deixemos de lado as religiões cristãs e todas as outras.

Há formas mais sutis [tenho observado] de manifestação do fanatismo entre umbandistas.

Vejamos uma característica importante, e que acaba se desdobrando em outra(s), que detecta facilmente a sua construção e desenvolvimento. No campo religioso, o fanatismo fica muito claro quando a pessoa que crê numa ideia [ou num ideal ou num ideário] coloca a manifestação concreta – ou material – acima daquilo que a move e sustenta. Isso pode ocorrer não somente na religião, mas também em outros campos da vida social e cultural, dentre eles, os citados no início desse texto. É fácil de se detectar isso numa religião, quando a pessoa fanática a coloca [a religião] acima de Deus ou da(s) Divindade(s). Ou quando, ilusoriamente, “prende” Deus e as divindades que cultua, atrelando-os à sua religião. Ou, até mesmo, quando coloca o seu templo acima da própria religião que pratica; ou como o mais importante dentro dela, o centro de tudo. O ideário teológico e filosófico da religião fica atrelado a esta manifestação de forma quase [muitas vezes] patológica.

É verdade, reitero, que na Umbanda não se manifesta o fanatismo da forma como vemos [e criticamos] em outras religiões que podemos observar aqui no Brasil. Mas, de formas sutis, insisto, ele se manifesta na nossa religião. E talvez seja essa sutileza o aspecto sustentador e mantenedor das manifestações fanáticas no seio umbandista. Obviamente, estou escrevendo para observar tais características, pois elas ocorrem em muitos casos, em muitos lugares, mas não em cem por cento deles [refiro-me aos terreiros]. Assim fosse, em se tratando de uma religião natural como a nossa, tenhamos certeza, ela já teria sucumbido e se tornado uma outra coisa qualquer.

Vejamos: o dogmatismo [sobre o qual já escrevemos em outro texto] caminha de braços dados e a passos largos com o fanatismo. Então, se um determinado dogma é apregoado no terreiro que frequento, tudo que o contrarie será rebatido, combatido e, se houver oportunidade, aniquilado por mim. As redes sociais têm se mostrado, infelizmente e cada vez mais, como grandes manifestadoras do desserviço em prol do conhecimento religioso, basta observarmos.

Isso nos mostra que, para esta pessoa fanática aqui citada, a célula é maior, é o centro e é mais poderosa do que o todo. Ora, olhemos para um corpo humano, olhemos para o planeta, e veremos que uma parte nunca poderá ser maior que o todo. Um terreiro umbandista é uma célula ou uma parte de um todo complexo [no sentido de profundidade] que é a nossa religião, que possui direção real [divina e espiritual] no astral. Pergunte, com o coração aberto, ao seu guia espiritual chefe ou ao de outro médium, de sua confiança, se há concordância por parte dos superiores da nossa religião para com esse tipo de conduta e direcionamento.

“O meu exu, a minha pombagira, o meu caboclo, a minha preta-velha etc. é mais poderoso(a) do que qualquer outro(a)”. Ainda que isso não se manifeste explicitamente (ou verbalmente), pois, vai de encontro ao código de conduta e pensamento da religião, podemos observar e captar tal movimento a partir de atitudes de alguns adeptos(as) da Umbanda. O meu Orixá é o mais poderoso? Ora, Orixá é manifestação de qualidade de Deus (nossa Origem – nosso[a] Pai/Mãe), é parte Dele(A). Como uma parte de um corpo pode ser maior ou mais importante do que a outra? Se meu coração parar, eu morro; se meu cérebro paralisar, acontece o mesmo. Então…

A Umbanda encontra-se espalhada por todos os cantos desse nosso país continental. A bem da verdade, ainda que todos os templos (mesmo que não se comuniquem entre si), cultuem os mesmo Orixás e linhas de trabalho espiritual, cada um tem suas características. Refiro-me às características próprias daquele templo, que muito devem ao espírito guia-chefe que o comanda, por conta da sua trajetória, mas também às características culturais de cada região, estado ou cidade. Isso faz parte do código umbandista e é fácil de se detectar, caso observemos de forma atenta e acurada. Que outra religião se manifesta assim? Talvez… talvez mesmo, alguma outra religião natural. As religiões mentalistas se mostram enquadradas. Isso não quer dizer que a Umbanda seja um campo livre, a bel prazer dos seus adeptos encarnados. Quem comanda, e assim sempre será, é o guia-chefe espiritual daquele terreiro. Este, responde ao Orixá que comanda aquele trabalho. E este Orixá responde a outros Orixás em instâncias superiores.

Somente na breve citação do parágrafo anterior, pode-se observar que, partindo de uma mesma base, a Umbanda se mostra, dentro de manifestações culturais diferentes, de modos diversos, porém, mantendo uma base teológica única. Então, o fanatismo me fará pensar e apregoar que o modo certo é o meu, aqui no Rio de Janeiro, em detrimento de uma determinada manifestação umbandista lá na Amazônia, a milhares de quilômetros de onde estou? Isso não condiz com a forma que a nossa religião vem se mostrando ao longo desses pouco mais de cem anos de existência. Sejamos coerentes e sensatos!

Nós, que tanto criticamos a intolerância religiosa externa (aquela que vem de ateus, agnósticos ou de adeptos de outras religiões para conosco), não estamos sendo internamente intolerantes, quando assim agimos? Reflitamos bastante!

O combate à manifestação do conhecimento no seio umbandista caminha  a passos largos e de braços dados ao dogmatismo e ao fanatismo. Ora, só a real aquisição de conhecimento nos traz crescimento, desenvolvimento e evolução factíveis. Estudar uma teoria não descaracteriza a religião, assim como não descaracteriza qualquer ciência ou filosofia [e a Umbanda carrega essas três vias em si]. Nesse sentido, há alguns pontos a serem observados:

  • Não há notícia ou qualquer vestígio, na história humana, de qualquer modo de conhecimento que tenha surgido teoricamente para depois ser colocado em prática. Sempre e inexoravelmente, a teoria surge da observação e estudo aprofundado de algo que foi praticado. O oposto disso é simplesmente impossível! Portanto, o pé-no-chão da prática umbandista nunca será suplantado por qualquer interpretação ou explicação teórica. O estudo teórico deve sempre servir de instrumento para a melhor prática.
  • Ainda assim, o verdadeiro conhecimento se dá quando é absorvido em nosso íntimo e começa a provocar em nós algum tipo de transformação [seja ela qual for]; do contrário, será apenas uma aquisição de informação. E a informação é, única e tão somente, o primeiro passo para a aquisição e absorção daquele conhecimento, não devemos parar nela.
  • Todo e qualquer estudo teórico exotérico [aberto ao público em geral] não deve carregar em si os mistérios esotéricos [fechados, restritos] da religião. Ritualísticas, elementos litúrgicos, estes sim, compõem a prática religiosa dentro do templo. As aberturas de mistérios via internet têm acelerado um processo negativo muito preocupante. Restringindo-se essa expansão virtual a tópicos básicos e teóricos, não há problema algum na disseminação do conhecimento. Mas, pelo amor de Olorum e de todos os Pais e Mães Orixás, ninguém pratica religião, de verdade, por intermédio da tela de um computador, celular ou tablet!
  • O uso da razão instrumental [parafraseando Max Horkheimer*], se trazido para o processo de conhecimento umbandista, também é algo preocupante. Isso se dá quando o processo racional é operacionalizado ou, trocando em miúdos, quando o conhecimento é usado em benefício de algo, de alguém, de algum ideal particular ou de determinado grupo; quando utilizo-me de determinado conhecimento para controlar mentes e vidas. Em oposição a isso – como diz o autor citado – devemos utilizarmo-nos da razão crítica. Sim, o conhecimento real é aquele que nos faz pensar e apura em nós o senso crítico.

Tudo isso deve ser observado, mas não pode sobrepor-se à fé. A Umbanda é, como nos ensinou o Sr. Caboclo das Sete Encruzilhadas, na primeira e histórica manifestação ordenada da nossa religião, a prática do espírito para a caridade. Mas está, como tudo, em franca evolução e, se neste seu segundo século de vida novas possibilidades se mostram [neste momento, o conhecimento brilha como um Sol para todos nós] é para agregar a essa base e não para apagá-la.

Então, a não propagação do conhecimento pode se mostrar como um instrumento do fanatismo e do dogmatismo, mas, o uso da razão instrumental [conhecimento passado com intenções negativas] também. Nós, aqui na Ordem Mágica Caminhos da Evolução optamos pelo conhecimento sadio, crítico, transmutador e que nos faz progredir mais e mais, em nossos íntimos, num movimento de crescimento interno, a cada dia.

Não devemos racionalizar a fé de modo extremo. A razão deve fazer parte da nossa caminhada religiosa, pois, sem ela, como seremos críticos? Mas ativar aquilo que definimos como “modo sentir” é fundamental para qualquer compreensão no âmbito divino ou espiritual. A racionalidade deve ser um holofote que ilumina o nosso caminho, conduzido [tal holofote] por este “modo sentir”. Talvez concordemos com Baruch Spinoza**, no aspecto em que ele demonstra a razão como um instrumento para o desenvolvimento dos afetos [ que aqui na nossa definição, insistimos e apresentamos como “modo sentir”].

Eu poderia fazer desse texto uma pequena enciclopédia, exemplificando manifestações corriqueiras do sutil fanatismo que se mostra na Umbanda. Mas creio que será mais salutar e frutífero se, refletindo acerca do que aqui leu, você comece a identificar no dia-a-dia, ao seu redor, na sua rotina religiosa, tais práticas.

Nós, umbandistas, devemos observar isso atentamente, pois, caso o fanatismo cresça de forma desordenada, chegará a um ponto em que se tornará insustentável. E, de forma alguma, o fanatismo deve se sobrepor à fé.

 

Um saravá fraterno!

 

      André Cozta

 

*Max Horkheimer (1895-1973)  foi um filósofo e sociólogo alemão, famoso por seu trabalho em teoria crítica como membro da “Escola de Frankfurt” de pesquisa social. (WIKIPEDIA – https://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Horkheimer – Consulta em 18 Dez. 2023)

** Baruch Spinoza (1632-1677) foi um filósofo que viveu nos Países Baixos; defendia, em oposição ao racionalismo cartesiano, os afetos como afecções corporais que aumentam e ajudam ou diminuem e contrariam potência de ação deste corpo; também dizia que os afetos são as ideias destas afecções do corpo corpo (SPINOZA 2, III, Def. 3, p. 98 – ÉTICA – Trad. Tomaz Tadeu – 2009 – Autêntica).

Fonte da imagem: https://br.freepik.com/vetores-premium/maos-de-oracao-realistas_3467186.htm

 

2 comentários em “QUANDO O FANATISMO SE SOBREPÕE À FÉ”

  1. Ótimo texto André. O que eu observo é que há muito pouca visão plural, visão de unidade, o impera são pequenos líderes que ditam uma corrente de pensamento umbandista própria. E estes por apego ao poder que adquiriram, e medo de perder o rebanho de fiéis, vai ditando regras e formas de comportamento…poucos são os líderes e condutores ao conhecimento, muitos são os “poderosos” detentores do saber centralizador.
    E com líderes assim o rebanho de fiéis apenas repete o comportamento do seu pastor.

    1. Exatamente irmão, você está certíssimo!
      Mas, apesar disso, seguimos fazendo a nossa parte, conforme dita a consciência.
      Muito obrigado pela contribuição e um abraço fraterno!

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