PARRÉSIA É PAPO RETO

Parrésia é uma palavra de origem grega que significa liberdade oratória ou afirmação corajosa. Parresiasta pode ser considerada aquela pessoa que fala livremente, diz tudo o que pensa de forma livre e destemida.

A palavra parrhesia aparece pela primeira vez na literatura grega em Eurípedes (ca. 484-407 a.C.) e ocorre através do antigo mundo grego das letras desde o fim do século 5 a.C., mas pode ser encontrada ainda em textos patrísticos escritos no fim do quarto e durante o século 5 d.C. dúzias de vezes – por exemplo, em João Crisóstomo (345-407) […] (FOUCAULT; 2020, P. 1)

O parresiasta (parrhesiastes) é aquela pessoa que diz tudo o que tem em mente, não esconde nada, abre o coração e a mente para outras pessoas completamente a partir do seu discurso. Sua fala é franca, honesta e direta.

Para Michel Foucault, este conceito nos lança um olhar sobre o “dizer-a-verdade” como exercício vital para a prática docente na formação humana. Ou seja, o ensino precisa ter no(a) professor(a), durante a transmissão do conhecimento, um(a) parresiasta, aquele ou aquela que traz a verdade no seu mais franco e límpido modo e forma.

Como nos diz Bisinella dos Santos (2016, P. 04-05):

[…] Foucault se debruça também sobre a figura do professor, daquele que ensina. Aquele que ensina é detentor de “um saber característico como tekhné, saber-fazer, quer dizer, saber implicado em conhecimentos, mas conhecimentos que tomam corpo em uma prática e que implicam, para seus aprendizes, em conhecimento teórico, bem como em uma série de exercícios” (FOUCAULT, 2011, p.23). Como detentor de um conhecimento, o professor, ou este técnico do conhecimento, é capaz de ensinar os outros. Para tanto, ele deve estar ligado a uma tradição e comprometer-se com ela. Mas aquele que se liga ao conhecimento desta maneira não tem nenhuma obrigação de se arriscar em nome da verdade capaz de transformar a substância ética do sujeito. Apesar de ser obrigado a falar, ele o faz por obrigação de exercício. Nesta obrigação, a sua fala não está implicada num ato de coragem, ao contrário, o que ensina está respaldado por um tipo de lugar comum: “aqueles que o escutam estão ligados a um tipo de saber comum, de herança, de tradição” (FOUCAULT, 2011, p.23). Além disto, cabe mencionar que, neste caso, “o dizer-verdadeiro técnico e do professor une e liga. O dizer-verdadeiro do parresiasta toma os riscos da hostilidade, da guerra, do ódio e da morte” […] (FOUCAULT, 2011, p.23).

Introdutoriamente, podemos compreender o conceito de parrésia, as funções de um parresiasta e, até mesmo, o anseio de Foucault em carregar este conceito para o ensino, fazendo do(a) docente um(a) ensinador(a) franco(a) que leva a verdade aos seus alunos e alunas.

Esta nossa introdução visa trazer um entendimento básico a você, para que possa compreender a longa viagem que nos foi contada. Vamos a ela…

A parrésia é, antes de mais nada, um conceito. E nós já compreendemos por aqui que conceitos são, nada mais nada menos do que essências fortalecidas, desenvolvidas e “caminhantes” entre nós. Como tal, a parrésia foi percorrendo muitos recantos do mundo, ao longo da história, e foi tocando e imantando muitas pessoas que, envolvidas pelos seus “encantamentos”, acabaram desenvolvendo em si todas as virtudes e qualidades de autênticas parresiastas.

Como já sabemos, ela foi vista pela Grêcia, há muitos milênios, passou por outros cantos da Europa na Idade Média (e, quiçá, também por outros continentes sobre os quais não fomos informados); mas também sabemos que Foucaut flertou com ela, em seus estudos e reflexões, há não muito tempo, no nada longínquo século XX.

Ufa, como viaja esta menina! Aliás, será mesmo uma menina? Afinal, como conceito advindo de uma essência, ela não tem forma definida; pode aparecer em algumas formas, mas, nada definitivo. Porém, essa retidão e franqueza, características primais da parrésia, nos parecem muito femininas, não é mesmo? Bem, ainda que não seja uma menina, parece-nos que ela carrega muita feminilidade em si, ao menos, enquanto vibração.

Sua viagem mais recente, conforme nos contou um informante confiabilíssimo, após sua última parada pela França e um intenso flerte com Foucault, foi rumo ao Brasil. Sim, ela desembarcou, não tem tanto tempo assim, no Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro. Carregava em si uma vontade antiga… queria aportar pelas bandas da Cidade Maravilhosa. Intuía que o lugar desejado tinha tudo a ver com ela.

Assim que desembarcou, sem conhecer ninguém no lugar e com pouquíssimas informações acerca do local (quase nenhuma), resolveu perambular e, não muito longe do aeroporto, viu um conjunto de residências; resolveu dar uma paradinha por ali. Parrésia aportava, em poucos minutos no Rio de Janeiro, no Complexo da Maré.

Caminhou pela comunidade, porém, ela estava invisível aos olhos de todas as pessoas (ao menos, daquelas que por ali se encontravam, naquele momento). Não se preocupava em ser percebida, pois, já talhada em suas lidas conceituais (ou enquanto conceito em si), sabia que, caso não tomasse iniciativa e adentrasse o íntimo de alguém, não seria sentida ou percebida.

Continuou perambulando e estava gostando do que via até que, em dado momento, numa encruzilhada, avistou um belo casal e percebeu que eles a viam e aguardavam-na com um largo sorriso no rosto. Ele, um homem negro forte, vestia um terno de linho afinadíssimo, bebia um copo de cerveja, tinha um cigarro no canto da boca e um chapéu Panamá com uma listra vermelha, além de uma bengala tricolor (vermelha, preta e branca). Ela, uma mulher de pele jambo, com longos cabelos negros, também usava um chapéu semelhante ao dele, porém menor, uma blusa vermelha decotada, uma minissaia preta bem justa. Bebia um copo de cerveja, tragava o seu cigarro e sorria muito.

Quando Parrésia se aproximou, ele, o homem, abriu os braços e falou, em voz alta:

– Seja bem vinda aos meus domínios! Há muito eu te espero!

Parrésia sorriu, nada falou, olhou ao seu redor. Tudo e todos haviam desaparecido e, além dela, somente aquele casal por ali estava. A mulher sorriu, porém, nada falou. E o homem, visivelmente feliz, voltou a falar:

– Tenha certeza que, aqui, você encontrou, finalmente e após muito tempo, o seu verdadeiro lar.

A mulher o cutucou e sussurrou ao seu ouvido:

– Que força estranha é esta, meu amigo? Em poucos minutos já a vi assumir várias formas e nenhuma, intermitentemente.

– Minha linda parceira, assim é a vida de um conceito. Enquanto ela não encontrar uma forma definitiva… se é que deve encontrar alguma… ela será em si todas e nenhuma ao mesmo tempo. O mais importante é você compreender que, o que importa, de fato, é que temos aqui um conceito que vai fortalecer o nosso trabalho.

– Ah, já estou entendendo. – Disse a mulher.

Parrésia mostrava-se tímida. Sabia que havia encontrado o lugar certo para aportar, mas, ainda assim, carregava algumas dúvidas. Percebendo isso, o homem falou:

– Não se preocupe, você vai se adaptar rapidamente. Venha conosco!

No instante seguinte, ele, ela e Parrésia encontravam-se na Lapa, em frente aos Arcos, naquele bairro clássico e histórico da antiga capital brasileira. Rapidamente, ele se pôs a falar:

– Aqui pode ser um ponto de partida para você se alastrar por este lugar. Fortalecer-se aqui será a sua melhor opção, pois, poderá considerar este ambiente como seu ponto forte original e, rapidamente, se alastrará por todo o Rio de Janeiro.

Se é que um conceito sorri, podemos dizer que Parrésia  novamente sorriu. Começava a se encontrar no Rio de Janeiro.  A mulher olhou para ela e perguntou:

– Bem, até onde sei, enquanto conceito você deve ter um nome, um termo que a defina, certo? Já sei que trabalharemos com você, enquanto essência e conceito, o tempo todo. Como devemos chamá-la e, consequentemente, espalhá-la?

Parrésia não falava, afinal, conceito não fala, mas, enquanto essência fortalecida, imediatamente, colocou o seu nome nas mentes daquele casal. Ambos se entreolharam e, em uníssono e espantados, falaram em voz bem alta:

– PARRÉSIA???!!!…

Ele soltou uma breve gargalhada e falou:

– Eu já sabia!!! – Olhou para aquele conceito e prosseguiu falando -: Mas, por aqui, saiba, esse nome não vai funcionar. Se me permite, tenho uma alcunha adequada para que você possa se alastrar facilmente por estas terras… (e águas, montanhas, matas, asfalto…) do meu Rio de Janeiro.

Parrésia era só ouvidos (se é que conceito tem ouvidos). O homem falou:

Papo Reto. Por que “´papo reto não tem curva” e esta alcunha define você de forma fácil e popular.

Parrésia sorriu e, dali em diante, espalhou-se como poucos conceitos conseguiram, ao longo dos tempos, na Cidade Maravilhosa. Parrésia, por aqui, é Papo Reto. Quem nos alertou sobre isso foi o filósofo carioca Pedro Poeta (Pedro Miranda); e quem nos contou essa história foi um amigo incondicional, o Sr. Zé Pelintra das Almas!

Um saravá fraterno e filosófico para você!

André Cozta

 

REFERÊNCIAS:

BISINELLA DOS SANTOS, Marcos Augusto Wistuba. A “Parrésia” em Foucault, um olhar sobre o “dizer-a-verdade” como exercício vital para a prática docente na formação humana. 2016. Universidade São Francisco. Bragança Paulista.

FOUCAULT, Michel 1ª. CONFERÊNCIA: O SIGNIFICADO DA PALAVRA PARRHESIA. PROMETEUS – Ano 6 – Número 13 – Edição Especial – E-ISSN: 2176-5960. 2020.  Universidade Federal de Sergipe. Aracaju.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *