DOGMATISMO NA UMBANDA

Precisamos abordar uma questão, no que se refere ao dogmatismo e à sua aplicação no dia a dia umbandista. Porém, antes, leremos algumas definições – linguísticas e filosóficas – para que possamos prosseguir com a nossa breve análise.

Iniciamos com a contribuição do professor Flávio Barbosa (2023) que, gentilmente, compartilhou um pouco do resultado da sua pesquisa no campo linguístico:

“ A palavra dogma, em português, vem do grego dógma, atos, com o significado ‘o que parece bom’. Desse significado deriva o sentido ‘opinião, decisão, decreto’ e, daí, podemos concluir que um dogma seria uma espécie de ‘decreto eclesiástico’, um ato normativo para as condutas da religião.

Essa palavra grega que mencionei antes remonta ao verbo (também grego) dokéō ‘crer, parecer bom’ e, daí, ‘decidir’. Uma curiosidade: historicamente, o grego dóksa ‘opinião’ é da mesma raiz de dokéō – em ambos os casos, trata-se de um posicionamento pautado em percepção referente ao que é melhor.

Na Grécia antiga, o sentido de dogma é ‘decisão política de um soberano ou de uma assembleia’ – voltamos, portanto, ao eixo de opinião e decisão. É importante salientar que esse sentido é histórico e, normalmente, não circula mais na língua.

Além da questão do étimo, gostaria de destacar dois sentidos muito importantes entre os oito possíveis que lemos no dicionário Houaiss – esses são os usos que de fato circulam para a palavra, no dia a dia:

ð (Teologia) ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível, cuja verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar.

ð (por extensão do sentido teológico) opinião sustentada em fundamentos irracionais e propagada por métodos que também o são.

Resumindo todos os oito sentidos dicionarizados, esses seriam os principais. Temos aí 1) um elemento estrutural das religiões humanas, pois todas têm princípios axiais, que não devem ser questionados, sob pena de descaracterização; 2) uma espécie de desvirtuamento desse elemento estrutural, que, em vez de representar crença basilar, fundamental, torna-se desculpa para autoritarismo religioso, levando a ameaças e a diferentes tipos de violência.

[…] Parece claro que o primeiro sentido não é o mais usado. No senso comum (e mesmo nas críticas religiosas), as referências a dogma não são tão neutras; pelo contrário: elas costumam ser recriminadoras, tratando das situações viciosas previstas no segundo sentido. Entretanto, não se deve ignorar o valor teológico, estruturante, da ideia de dogma – é um conceito diferenciador das religiões. O Catolicismo e o Protestantismo, por exemplo, não incorporam o dogma da reencarnação, o que os diferencia da Umbanda e do Espiritismo. Por outro lado, a Umbanda e o Espiritismo não preveem a crença na Santíssima Trindade, o que os diferencia do Catolicismo. O uso de elementos magísticos da Umbanda poderia ser considerado um dogma que a diferencia do Espiritismo, que praticamente proíbe esse princípio religioso. O valor do dogma é tal que, se aparece uma instituição que se diz umbandista e não usa elementos magísticos, ou uma instituição espírita que os usa, começa a haver estranhamento e essas instituições são consideradas mistas ou descaracterizadas.

Uma última observação importante é que, embora haja uma relação histórico-linguística entre dogma e doxa, e também um fundo de significado comum na ideia de ‘opinião’, isso não quer dizer que, como elemento axial de uma religião, hoje o dogma seja apenas uma opinião – torna-se um posicionamento institucional que confere identidade religiosa e isso faz o sentido transcender o plano individual, próprio da opinião.”

Agora, vejamos a definição de Dogma cunhada pelo filósofo italiano Nicola Abagnano (1901-1990) em seu Dicionário de Filosofia (2000, P. 292-293)

[…] 1. Opinião ou crença. Nesse sentido, essa palavra é usada por Platão […] e contraposta pelos céticos à epoché, ou suspensão do assentimento, que consiste em não definir a própria opinião em um sentido ou em outro […] Kant entendeu por Dogma ‘uma proposição diretamente sintética que deriva de conceitos’ e como tal distinta de uma ‘proposição do mesmo gênero, derivada da construção dos conceitos’, que é um matema. Em outros termos, os Dogmas são ‘proposições sintéticas a priori’ de natureza filosófica, ao passo que não poderiam ser chamadas de dogmas as proposições do cálculo e da geometria […]

  1. Decisão, juízo e, portanto, decreto ou ordem. Nesse sentido, essa palavra foi entendida na Antiguidade […] para indicar as crenças fundamentais das escolas filosóficas, e depois usada para indicar as decisões dos concílios e das autoridades eclesiásticas sobre as matérias fundamentais da fé.

Na mesma obra, o autor nos traz a seguinte definição sobre Dogmatismo (2000, P. 293):

[…] O significado desse termo foi fixado pela  contraposição que os céticos estabeleceram entre os filósofos dogmáticos, que definem sua opinião sobre todos os assuntos, e os filósofos céticos, que não a definem […] Desse ponto de vista, são dogmáticos todos os filósofos que não são céticos. Um novo significado de Dogmatismo foi o que Kant atribuiu a essa palavra, ao identificar Dogmatismo com metafísica tradicional, entendendo por ele ‘o preconceito de poder progredir na metafísica sem uma crítica da razão’ […] Esse Dogma filosófico, que consiste em aventurar-se a razão em pesquisas que estão fora de sua alçada, por estarem além da esfera da experiência possível, é incentivado pelo ‘Dogmatismo comum’, que consiste em ‘raciocinar levianamente sobre as coisas das quais não se compreende nada e das quais nunca ninguém no mundo entenderá nada’ […] Essa palavra foi usada por Fichte, para indicar o ponto de vista do realismo, segundo o qual a representação é produzida por uma realidade externa, e não pelo eu […], e por Hegel, para designar o ponto de vista oposto ao da dialética, segundo o qual ‘de duas afirmações opostas uma deve ser verdadeira e outra, falsa’ […] Esses dois filósofos deram assim início ao péssimo costume de chamar de Dogmatismo os pontos de vista diferentes dos seus próprios, empregando a palavra sem nenhuma referência ao seu uso histórico. Mais conforme a esse uso é o significado que Husserl lhe atribuiu, que não implica nenhuma condenação da atitude correspondente. ‘A justa atitude no campo das indagações que chamamos de dogmático, em sentido positivo, ou seja, pré-filosófico, e ao qual pertencem as ciências empíricas (mas não só estas), é deixar honestamente de lado, com toda ‘filosofia da natureza’ e toda ‘teoria do conhecimento’, qualquer ceticismo e assumir os dados cognitivos onde eles efetivamente se encontram […] O Dogmatismo se contraporia assim à epoché fenomenológica, própria da filosofia […]

Com tão profundas explanações, tanto pela via filosófica quanto pela via linguística, podemos compreender o dogma na sua conceituação original, mas também na sua ressignificação promovida pela sua aplicação prática e cotidiana. Se pararmos para refletir acerca desse movimento, perceberemos que, no ambiente religioso, o que lemos nas citações anteriores, aplica-se corretamente.

Em cursos de teologia umbandista, é costumeiro aprendermos que a Umbanda não possui dogmas, pois, segundo esta linha de pensamento, o dogma nada mais é do que uma espécie de “é assim porque assim é… e ponto final” não permitindo à pessoa que questiona uma reflexão acerca daquilo que está sendo colocado. Mas há também uma linha de pensamento, dentro do nosso ambiente religioso, que define, defende e promove os dogmas umbandistas, como eixos fundamentais para a prática religiosa.

Assim sendo, trazemos à baila a nossa reflexão acerca deste assunto.

Na prática, temos dogma e dogmatismo, no dia a dia umbandista, em seu sentido mais negativo ou, como já citamos, na sua ressignificação contemporânea. Por que, infelizmente, ainda há quem questione a aplicação do ensino teológico com a finalidade de expandir o conhecimento no âmbito interno da nossa religião. Então, dogmatizando [ou numa prática bem dogmatizadora], algumas pessoas carregam consigo o controle das ideias e de opiniões.

No dicionário do Google, encontramos a definição para dogmatista como  “adjetivo de dois gêneros; relativo a dogmatismo; que ou quem ensina ou estabelece dogmas”.

A partir dessa definição, sintetizaremos a nossa compreensão. Ela passa pelo fato de haver, indubitavelmente, em nosso meio, pessoas dogmatizadoras (que ou aquele que dogmatiza; que ou quem se expressa em tom dogmático – segundo o dicionário do Google), bem como, pessoas dogmatizadas, que aceitam o dogma [e até buscam por ele, como quem busca uma fórmula – ou fórmulas – pronta(s) para o seu bem viver]. Além, é claro, das pessoas dogmatistas.

O ser dogmatista, além da definição por nós aqui exposta, linhas atrás, também – ouso estender a definição, por minha conta e risco – pode referir-se àquele sujeito que cria dogmas. E, talvez aí esteja o maior dos perigos dentro de todo este processo.

A meta controladora, ou seja, aquele objetivo de controlar mentes, vidas, passos, de tudo e de todos que ao seu redor estão – dentro dos terreiros -, faz com que pessoas se elevem (ou se rebaixem???) a tal grau. Quando chega-se a este ponto, temos uma situação delicada e preocupante.

Não mais me estenderei, apenas peço que você reflita acerca de tudo o que aqui leu. E, como contribuição, encerro dizendo que a Umbanda é uma escola evolutiva, que visa auxiliar cada ser que a ela chega, na sua evolução, expandindo sua consciência dentro da jornada evolutiva, a partir do conhecimento, portanto, o dogma na sua significação mais positiva até pode contribuir para isso, mas, infelizmente, sua face mais brilhante vem se perdendo há muito. O que temos visto é a sua aplicação negativa, que se opõe, o tempo inteiro, ao real objetivo da Umbanda em nossas vidas.

Irmã e irmão umbandista, reflitamos.

Fique com o nosso saravá fraterno!

 

      André Cozta

 

 

REFERÊNCIAS 

BARBOSA, Flávio Prof. (UERJ – UFRJ) – 2023 – Rio de Janeiro

 

ABAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. – 2000 – Martins Fontes – São Paulo

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