DIVINDADE E HUMANIDADE

Percebemos na Umbanda algumas repetições históricas, daquelas que foram cristalizadas no meio religioso humano e vão conduzindo adeptos a caminhos errôneos, ainda que aparentemente corretos e firmes. Aqui me refiro à repetitiva humanização de Deus, das Divindades e das coisas divinas.

Vemos muitas conceituações acerca dos Orixás que lhes imprimem defeitos humanos, talvez com o intuito de justificar nossas próprias mazelas. E, se isso vem ocorrendo neste período recente em que nos encontramos encarnados, percebemos historicamente tal aplicação em culturas remotas. Vejamos este comentário do filósofo grego Epicuro, em sua famosa carta a Meneceu (LAÊRTIOS; 1987, P. 311):

“[…] Em primeiro lugar, considera a divindade um ser vivo e feliz, de acordo com a noção impressa em nós pela natureza, e não lhe atribuas coisa alguma estranha à imortalidade ou incompatível com a felicidade. Crê firmemente que a ela convém tudo que pode confirmar e não eliminar a sua bem aventurança e imortalidade. Os deuses realmente existem, e o conhecimento de sua existência é manifesto. Mas eles não existem como a maioria crê, pois na verdade ela não os representa coerentemente com o que crê que eles sejam. Ímpio não é quem elimina os deuses aceitos pela maioria, e sim quem aplica aos deuses as opiniões da maioria. De fato, as afirmações da maioria sobre os deuses não são preconcepções verdadeiras e sim suposições falsas. Por causa de tais suposições falsas imagina-se que derivam dos deuses os maiores males e bens. Mas, aqueles que têm uma familiaridade constante com as próprias formas de excelência fazem uma imagem coerente dos deuses e repelem como alheio a estes tudo que não se coaduna com sua natureza”.

Ainda que hoje, na Umbanda, entendamos os Orixás Sagrados como Divindades manifestadoras de aspectos/qualidades da nossa Origem Divina (Deus Pai Criador/Deusa Mãe Geradora, uno-a- em Si), diferentemente de culturas mais antigas que viam tais manifestações qualitativas como deuses ou deusas, o pensamento de Epicuro se mostra adequado e atualíssimo.

A Natureza de Deus é perfeita, portanto, consequentemente, tudo o que dessa perfeita Natureza advém se manifestará como qualidade da perfeição. Porém, nós, seres em constante evolução, como “aparelhos” em fase de testes e prestes a um lançamento no “mercado”, recebemos tais aspectos e precisamos, por hábito e adaptação, acostumarmo-nos a lidar com essas qualidades e manifestá-las naturalmente. Exatamente pelo fato de herdarmos as qualidades de Deus, mas não sua perfeição divina.

A história se repete para que as mesmas oportunidades de aprendizado no processo evolutivo se mostrem a  todos nós, espíritos em evolução, e também para que todos tenhamos a chance (ou diversas chances) de absorvermos um conhecimento mínimo, a fim de que possamos galgar degraus conscienciais ou mentais, mas também espirituais, chegando ao cume das “sete montanhas evolutivas”.  Só assim poderemos ultrapassar, finalmente, o atual estágio reencarnatório rumo a etapa evolutiva seguinte, da qual ainda temos pouquíssimo conhecimento, quase nenhum.

Compreender Deus e suas Divindades (Orixás) como superiores a nós, é acessar a via da humildade e, concomitantemente, entendermo-nos como servidores. Afinal, porque ajoelhamos e batemos cabeça?

Que este breve texto e o pensamento de Epicuro aqui apresentados possam nos servir como base para uma reflexão profunda.

Um saravá fraterno!

 

André Cozta

 

 

 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 2.ed. Brasília: Editora UnB, 1987 – P. 311

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